Do livro “Vivendo com Propósitos” – Ed René Kivitz, p. 27 e 28
Por essas e outras, os templos e terreiros estão lotados, os gurus exotéricos_ e esotéricos estão em alta, e o misticismo varre as ruas com propostas inacreditáveis. As crendices e superstições que tecem a cultura do primitivismo religioso quase nos fazem acreditar que estamos de volta à idade das trevas. Desenvolve–se uma espiritualidade tribal, em que Deus torna–se um ídolo, de esquina que deve ser acessado para uma negociação, na qual os benefícios da divindade nada têm a ver com a seriedade do suplicante, pois pouquíssima gente tem forças para trilhar o caminho da transformação de dentro para fora. A experiência espiritual moderna, ou pós moderna, como preferem alguns, é na verdade, medieval. Primeiro porque vê Deus como um meio e não como um fim em si mesmo. Deus passou a estar a serviço do fiel, responsável por realizar seus desejos, sob pena de ser abandonado e considerado um Deus ausente, distante, omisso e lento demais para suprir as demandas dos desafios da vida.
Em segundo lugar, a espiritualidade contemporânea reserva muitos lugares para crédulos que acreditam no conforto produzido por uma fé mágica. É fita do Bonfim e do despacho, dízimos e correntes de fé, benzimentos e passes, jejuns e vigílias, novenas e procissões para tudo que é lado.
Sem dúvida, essa é uma experiência espiritual movida pelos paradigmas da auto–ajuda. Primeiro porque está centrada no indivíduo e seu desconforto, e tudo quanto espera lograr do contato com a divindade, qualquer que seja ela, é a melhora da situação em termos de "solução de problemas, de progresso social e bem–estar pessoal".
Mas, também, essa espiritualidade pós–moderna made–in movimento de auto–ajuda é cheia de truques e de artifícios para a conquista dos objetivos propostos. Assim como existem livros ensinando a fazer amigos e influenciar pessoas, existem outros tantos que ensinam "a oração que move a mão de Deus". Da mesma maneira como os neurolinguistas ensinam a "programação mental", os líderes espirituais ensinam a "programação dos deuses", mostrando que é impossível que os deuses não se comovam em favor de uma pessoa que acende uma vela, sobe uma escada de joelho, participa da corrente da fé, oferece donativos na creche do bairro, serve champanhe e cachaça nas esquinas escuras. Sem dúvida, aparentemente, uma espiritualidade de manipulação dos espíritos, mas certamente uma experiência de escravidão aos ritos, aos métodos e, principalmente, aos espíritos que por trás dessas coisas se escondem. Infelizmente, na tentativa de agarrar a vida pelo colarinho e de fazê–la vomitar prosperidade e conforto, vale tudo, ou quase tudo.
Essas experiências espirituais contemporâneas podem ser chamadas de pseudotranscendência. Apresso–me a dizer que nada é mais legítimo do que a busca de Deus, transcender no sentido religioso do termo. Mas o perigo está na pseudotranscendência, que Leonardo Boff compara com a experiência das drogas. Ele diz que "o problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano".7
De fato, existe muita gente querendo transcender, fazer contato com o sagrado, para que seus mundos sejam mudados: um novo emprego, uma cura, um conforto a mais. Outros desejam alívio, precisando de doses cada vez mais fortes de êxtases, e acabam alienando–se da realidade, ficando anestesiados para a experiência de viver, isolados no mundo da fantasia produzida pela experiência de arrebatamento. Nesse sentido, o critério para saber se uma experiência de transcendência é boa é a verificação do efeito que traz sobre o indivíduo: ela potencializa o ser humano ou o diminui? Em que medida essa experiência capacita o ser humano e o qualifica a enfrentar o cotidiano? A pseudotranscendência escraviza. A transcendência qualifica para a vida.
Uma experiência espiritual que funciona como válvula de escape, manipulação mágica da realidade e desculpa para a transferência de responsabilidades não pode ser considerada caminho para a felicidade, mas apenas rota de fuga e de alienação, que resulta em escravidão.