terça-feira, 21 de outubro de 2008

Acusações contra um culto invisível

Ninguém tenha seus próprios deuses, quer novos quer estranhos, além dos instituídos pelo Estado.
A ninguém se autoriza promover reuniões noturnas na cidade.
Lei das Doze Tábuas, 450 a.C, Cícero, Sobre as leis II.19

Então não deve ser considerado lamentável que homens de uma facção condenável, irregular e desesperada voltem sua ira contra os deuses? Que homens, arrebanhados dentre os menos qualificados da escória mais inferior, e mulheres crédulas (e pela inclinação do seu sexo, complacentes) formem uma súcia de profana conspiração?

Sua aliança consiste em reuniões noturnas marcadas por rituais solenes e folias inumanas, nas quais substituem os ritos sagrados por crimes inexpiáveis. São gente que esconde-se da luz e a evita; silenciosos em público, são tagarelas nos becos. Desprezam os templos como se fossem mausoléus, menosprezam os deuses e ridicularizam as coisas sagradas. Depreciam os nossos sacerdotes e desprezam os títulos de honra e os mantos púrpura dos altos governantes, embora eles mesmo mal tenham como cobrir a sua nudez.

Ah, mas que assombrosa insensatez e inacreditável audácia! Desdenham dos tormentos do presente, embora temam outros incertos e futuros. Embora temam morrer depois da morte, não temem morrer para o presente, e dessa forma uma esperança enganosa aplaca seus temores com o consolo de uma nova vida.

Ora, como coisas perversas propagam-se com maior facilidade, os abomináveis locais de reunião dessa ímpia assembléia estão multiplicando-se ao redor do mundo, devido à intensificação diária da imoralidade. Essa agremiação deve ser a todo custo erradicada e execrada.

Reconhecem uns aos outros através de símbolos e sinais. Amam uns aos outros antes de se conhecerem, por assim dizer. Praticam em todo lugar uma espécie de culto da luxúria, chamando-se promiscuamente de “irmão” e “irmã”. Desse modo, sob a proteção desses nomes consagrados, mera licenciosidade torna-se incesto, e assim vê-se que sua superstição vã e sem sentido orgulha-se de seus crimes.

Ouço que adoram a cabeça de um asno, a mais inferior das criaturas, consagrada por eles por não sei dizer qual tola persuasão, mas que deve provar-se religião digna e apropriada para tais condutas. Diz-se que adoram os orgãos genitais de seus pontífice e sacerdote, reverenciando nessa atitude o poder criativo de seu pai. Não sei se são verdadeiras essas acusações, mas por certo toda suspeita deve parecer aplicável com relação a ritos secretos e noturnos. Venerar um criminoso punido com extremo sofrimento por seus crimes, bem como a cruz na qual foi executado, é erigir altares que convém a miseráveis condenáveis e perversos, em que poderão adorar aquilo que merecem.

A história de como iniciam seus jovens noviços é tanto detestável quanto bem conhecida. Um bebê é colocado diante daquele que está para ser maculado por esses ritos, e é então assassinado pelo jovem discípulo. Avidamente — oh, o horror! — eles lambem o seu sangue; entusiasticamente repartem os seus membros. Através dessa vítima nasce seu elo comum; pela consciência dessa perversidade estão pactuados ao silêncio mútuo. Ritos sagrados dessa natureza são mais abomináveis do que quaisquer sacrilégios.

Sobre seus banquetes não é necessário estender-se, porque fala-se deles em todo lugar. Num dia de festa reúnem-se para um banquete, com todos as suas crianças, irmãs e mães, gente de todo sexo e de todas as idades. Ali, depois de muito festejo, quando seu ajuntamento vai se aquecendo e o fervor de sua luxúria incestuosa já foi estimulado pela bebedeira, um cachorro que foi amarrado ao candelabro é provocado e dessa forma extingue-se a luz que poderia incriminá-los. A escuridão encobre então sua sem-vergonhice, e abraços voluptuosos são trocados indiscriminadamente. Embora não sejam todos incestuosos de facto, em consciência todos o são, porque cada ato individual corresponde à vontade de todos.

Omito um grande número de acusações, porque as que mencionei já são mais do que suficientes; e todas essas, ou a maior parte delas, são verdadeiras, o que é deixado claro pela obscuridade de sua religião vil. De outro modo por que se esforçariam tanto para ocultar e encobrir aquilo que adoram, se não porque coisas honrosas sempre regozijam-se na publicidade, e crimes são mantidos em segredo?

Por que não têm altares, não têm templos, não têm images consagradas? Por que não falam jamais abertamente, jamais congregam-se livremente, se não pelo fato de que aquilo que adoram e escondem é digno de punição ou algo de que se deve envergonhar?

Além disso, de onde vem e quem é, ou onde está esse Deus único, solitário, desolado, que nenhum povo livre, nenhum reino e nem mesmo a superstição romana ouviram falar? A solitária e miserável nação dos judeus adorava um único Deus, e um Deus peculiar a ela mesma; mas adoravam-no abertamente, com templos, com altares, com vítimas e com cerimônias. E ele tinha tão pouca influência ou poder que foi escravizado, junto com sua nação particular, pelas divindades romanas.

Já os cristãos, que maravilhas, que monstruosidades inventam! Que aquele que é seu Deus, ao qual não podem nem mostrar nem contemplar, investiga diligentemente o caráter de todos, os atos de todos e, in fine, suas palavras e pensamentos secretos. Que ele percorre todos os lugares e em todo lugar está presente. Fazem dele alguém incômodo, inquieto e até mesmo despudoradamente inquisitivo, já que está presente diante de tudo que é feito e entra e sai de todos os lugares — embora, estando ocupado com o todo, não é capaz de dar atenção a particulares, nem pode ser suficiente para o todo enquanto está ocupado com particulares.

Minucius Felix (160?-300?), apologista cristão, recapitula as acusações dos pagãos em seu Octavius.

via A Bacia das Almas (via PavaBlog)

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